No
ano de 1968, José Saramago publicou no jornal A Capital, de Lisboa, a
crónica Carta a Josefa, minha avó. Anos mais tarde, ela seria publicada no
livro Deste
Mundo e do Outro.
Carta para
Josefa, minha avó
‘Tens noventa
anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu
tempo - e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os
pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha,
albufeiras de água.
Viste nascer o
sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete
universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama
quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e
lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua
casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à
luz.
Não sabes nada
do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem
de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas,
um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível
às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao
roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já
perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives.
Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu
círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma
bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-mo tu, ou terei sonhado
que o contavas?)
Transportas
contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos
claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi
rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu
sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é
o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando
nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz
parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos
se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão
calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos
brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste
bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te
roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o
como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis
palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo
continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais
importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas
palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de
que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas
tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o
céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos
e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus
noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão
bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»
É isto que eu
não entendo - mas a culpa não é tua.’
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