A ESCURIDÃO NÃO PODE EXTINGUIR A ESCURIDÃO. SÓ A LUZ O PODE FAZER.»

MARTIN LUTHER KING




quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

SAI DO COMBOIO (ÁLVAROCAMPOS/FERNANDO PESSOA



SAÍ DO COMBOIO 
Saí do comboio,
Disse adeus ao companheiro de viagem
Tínhamos estado dezoito horas juntos..
A conversa agradável
A fraternidade da viagem.
Tive pena de sair do comboio, de o deixar.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...
Toda despedida é uma morte...
Sim toda despedida é uma morte.
Nós no comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove porque sou homem.
Tudo me comove porque tenho,
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Da casa onde a não tratavam muito bem...

Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.

E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.
4-7-1934
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.  - 187.

DIVAGAÇÃO...


 Entrei com receio, devagar, olhando para um lado e para o outro….
Depois fiquei estática...pensando…





-Tem cuidado com o caixote esmurras a parede!

O outro olhou-o com desdém, pousou o caixote no chão, tirou do bolso um farrapo e limpou o rosto suado.

-Anda lá o tempo não para! Ainda falta meter no armazém muitos caixotes, queres fazer serão?

O outro olhou-o, virou-se e caminhou para a porta.

-Onde vais?

-Beber uma cerveja e fumar um cigarro.

-Vou-te fazer a folha!

-Mas você acha que eu sou um escravo. há mais de duas horas nisto? Escravo é você, que faz esse trabalho de humilhar os outros, para ganhar uma merda!

-Vai-te embora e não voltes, não te quero ver pela frente!

-E quem carrega os caixotes?

O outro não respondeu e na secretária começou a mexer nos papeis.

A porta bateu, ao ar livre, pensativo ficou a olhar sem ver nada, levando de quando em quando a garrafa à boca. Acendeu um cigarro calmamente. Depois levantou-se, pegou num caixote e entrou.

O outro continuava debruçado sobre os papeis. Não se olharam.

Nas suas idas e vindas, às tantos o outro saiu e começou também a carregar caixotes.

Quando tudo terminou já era noite.

-Boa Noite!

E o outro:

-Até amanhã!

Eu saí atrás.



O armazém agora é um pardieiro silencioso, abandonado, sem telhas, nem vidros, as pombas batem as asas, todo o chão está cheio de excrementos de pombas, há um fedor acre que se introduz nas narinas,