A obra de Torga tem um carácter
humanista: criado nas serras transmontanas, entre os trabalhadores rurais,
assistindo aos ciclos de perpetuação da natureza, Torga aprendeu o valor de
cada homem, como criador e propagador da vida e da natureza: sem o homem, não
haveria searas, não haveria vinhas, não haveria toda a paisagem duriense, feita
de socalcos nas rochas, obra magnífica de muitas gerações de trabalho humano.
Ora, estes homens e as suas obras levam Torga a revoltar-se contra a Divindade
Transcendente a favor da imanência: para ele, só a humanidade seria digna de
louvores, de cânticos, de admiração: (hinos aos deuses, não/os homens é que
merecem/que se lhes cante a virtude/bichos que cavam no chão/actuam como
parecem/sem um disfarce que os mude).
Para Miguel Torga, nenhum deus é
digno de louvor: na sua condição omnisciente é-lhe muito fácil ser virtuoso, e
enquanto ser sobrenatural não se lhe opõe qualquer dificuldade para fazer a
natureza - mas o homem, limitado, finito, condicionado, exposto à doença, à
miséria, à desgraça e à morte é também capaz de criar, e é sobretudo capaz de
se impor à natureza, como os trabalhadores rurais transmontanos impuseram a sua
vontade de semear a terra aos penedos bravios das serras. E é essa capacidade
de moldar o meio, de verdadeiramente fazer a natureza, malgrado todas as
limitações de bicho, de ser humano mortal que, para Torga, fazem do homem único
ser digno de adoração.
Fonte: Wikipédia
ORFEU REBELDE
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar a Musa
Se o canto
É de terror ou de beleza.
Orfeu Rebelde (1958)
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