A ESCURIDÃO NÃO PODE EXTINGUIR A ESCURIDÃO. SÓ A LUZ O PODE FAZER.»

MARTIN LUTHER KING




quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

UM CÊ A MAIS - MANUEL HALPERN


 
 
Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio.



Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.


Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem.


Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.


As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.

[Por enquanto o meu sistema ainda não me corrige para a nova ortografia, nem o computarizado, nem muito menos o mental! Não vai ser fácil, foram anos e anos, parece-me que só vou lá e contrariada coagida pela rectificação do computador. A forma de escrever aproxima-se, mas o que também vai motivar confusão é os desfasamentos da terminologia!]

10 comentários:

:.tossan® disse...

Não se preocupe com isso, todos entendem. Belíssimo texto! Beijo

Carlos Albuquerque disse...

Interessante este texto do Manuel Halpern, que quando transporta para a escrita o dom que tem,é uma maravilha de ler!
Estou de acordo com o Cê a mais. Bem gostaria de o ver varrido do mundo político que nos estrafega. Refiro-me a esse Cê, sim, que é hirto e robótico, qual eucalipto com tronco estilo pau de fósforo.
Abraço com ç, ganhador da batalha com os dois esses.

Laura disse...

Amei!

Apetece mandar tudo às urtigas, e não mais escrever como eles querem mas eu quero, raios prós c antes e depois, os tais que nos lixam o juizo que já é pouco...
confesso que não sei nada de nada do novo acordo, mas por que raios começaram agora e não deixaram para o ano dois mil e cinquenta..assim dava tempo de sumir do mapa e não me chateava assim...

A menina perdeu-se no caminho? a minha janelita lá está...
beijinhos da laura

Cris França disse...

Li emocionada, como numa viagem do tempo, lembrando de tantas coisas que mudam durante o caminho, das muitas coisas que deixamos, para que haja espaço para as coisas novas que ganhamos.

beijos minha querida!

Unknown disse...

Belo, Belissimo!!
Estou-me nas tintas para os acordos, confesso!!
bjs

Unknown disse...

Excelente artigo,foram muitos aanos agora vai ser difícil,pela minha parte peço desculpas antecipadas.
Beijo.

Lilá(s) disse...

Vai ser como o "euro" aos poucos lá nos vamos habituando, se bem que mentalmente continuo a converter em escudos rsrsr.
Beijinhos

Luma Rosa disse...

Como não concordar com este texto que repassa o sentimento de tanta gente? Agora quando olho as palavras que se modificaram, penso que o reaprender é simplesmente deseducar. Ainda estou engolindo no seco essa reforma, ainda acho que devería-se respeitar a evolução natural da língua. Beijus,

Cris França disse...

Manu,

Vim hoje te dar um beijo especial e agradecer por vc fazer parte da minha historia, tem um selinho para você lá no Canto.

Bombom disse...

Manu, o meu computador, tal como eu, é dos antigos e ainda não aderiu à nova ortografia, he,he! Felizmente já não exerço, senão ia ser complicado. Como é que posso aderir a este Acordo Ortográfico de políticos incultos que passaram administrativamente depois do 25 de Abril? Não à burrice oficializada!
Bjs. Bombom