A ESCURIDÃO NÃO PODE EXTINGUIR A ESCURIDÃO. SÓ A LUZ O PODE FAZER.»

MARTIN LUTHER KING




quarta-feira, 18 de agosto de 2010

CARTA A MEUS FILHOS - JORGE DE SENA


Carta a Meus Filhos

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós.
Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver.
Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse
“com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente
quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas
para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido
ou não tinham consciência de haver cometido.
Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande,
cheio de fúria
e de amor.
Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo,
que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero.
Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão.
Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão?
Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões,
quem restitui não só a vida,
mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos,
pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

12 comentários:

Em@ disse...

Puseste-me, aqui, a pensar, de que já era mais do que altura de se fazer algo em grande sobre Jorge de Sena!
já que me vida...
beijo no <3

Socorro Melo disse...

Oi, Manu!

Muito emocionante esse poema. Quantas verdades! Tudo que todos nós queremos dizer pros nossos filhos.Do lamento pelas injustiças, daqueles que deram a própria vida em favor de tantos e nem sequer são lembrados, e do cuidado que devemos ter com a nossa própria vida, e com o que vamos fazer, para que outros não sejam vitimados pelas nossas mãos.

Um grande abraço
Socorro Melo

Anónimo disse...

Oi Manú!
Agradeço as belas palavras e carinho deixados em meu espaço.Confesso que senti vontade de percorrer contigo em visita o localaté o farol...quem sabe um dia?

O nome para o qual acenamos, Jorge de Sena, representa, um dos escritores mais importantes na construção de um diálogo vivo entre Portugal, Brasil e África.
Lembrança viva!

Lindo post!Fiquei emocionada!
Um beijo

Nilce disse...

Sensacional, Manuela

"Acreditai que nenhum mundo,
que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá".

Que sábias palavras de Jorge de Sena.
Obrigada por compartilhar.

Bjs no coração!

Nilce

Anónimo disse...

De tirar o folêgo amiga!
Manu, não fiz aniversário não, aquilo é amor da melhor qualidade. Bom dimais da conta né!
Meu aniversário é em dezembro e faço tanta propaganda que ninguém esquece.
Adooooooro fazer aniversário.
Bjs querida.

Hugo de Oliveira disse...

Nossa que poema lindo...é maravilhoso. Vou dividir com os meus colegas de trabalho.

abraços

Hugo

Maria disse...

É um belíssimo poema de Jorge de Sena, que me deixa sem palavras. Comos tantos outros.
Mas deixo-te aqui um outro, musicado pelo José Mário Branco...

Carta aos meus netos

Quando eu for grande quero ser
Um bichinho pequenino
P'ra me poder aquecer
Na mão de qualquer menino

Quando eu for grande quero ser
Mais pequeno que uma noz
P'ra tudo o que eu sou caber
Na mão de qualquer de vós

Quando eu for grande quero ser
Uma laje de granito
Tudo em mim se pode erguer
Quando me pisam não grito

Quando eu for grande quero ser
Uma pedra do asfalto
O que lá estou a fazer
Só se nota quando falto

Quando eu for grande quero ser
Ponte de uma a outra margem
Para unir sem escolher
E servir só de passagem

Quando eu for grande quero ser
Como o rio dessa ponte
Nunca parar de correr
Sem nunca esquecer a fonte

Quando eu for grande quero ser
Um bichinho pequenino
Quando eu for grande quero ser
Mais pequeno que uma noz

Quando eu for grande quero ser
Uma laje de granito
Quando eu for grande quero ser
Uma pedra do asfalto

Quando eu for grande...
Quando eu for grande...

Quando eu for grande quero ter
O tamanho que não tenho
P'ra nunca deixar de ser
Do meu exacto tamanho.

Beijo, Manuela.

Laura disse...

Que pena que poucos seres humanos pensem como ele, para se respeitar o mundo, o próximo, a todos e sendo assim todos viveríamos da melhor forma e seriamos todos felizes...mas, o homem é ganancioso de poder e de ter mais e mais e isso estraga tudo..e rouba o sonho a outros homens...

Mas que linda carta e que belo sonho ele tem, assim como todos os que queremos o melhor para os nossos filhos, os filhos de todo o mundo...

Um beijinho querida manu..gosto de ti do que e creves e da forma como o fazes...

Luma Rosa disse...

O tempo são outros e no entanto, me parece que o sentimento humano, seus conflitos e situações envolvidas, continuam o mesmo! Esta carta é atemporal, pois ultrapassa credos, orientações e escolas. O tempo, com o seu passar, trata de colocar as coisas no lugar, já os filhos pertencem a um outro mundo em que certamente um dia não estaremos presente. Beijus,

Hugo de Oliveira disse...

Oi Manuela,

O escrito que publiquei do Fernando Pessoa em meu blog, encontrei em um dos cds da Maria Bethânia, que tenho aqui. Ela sempre grava poemas e citações dele, pois ela é o poeta que ela mais gosta.
Porém, na maioria das vezes ela edita os poemas, narrando apenas alguns trechos que combinam com a música que ela vai cantar.

Mas o poema original está aqui no Arquivo Pessoa, é só clicar e conferir que é sim do Fernando Pessoa.

http://arquivopessoa.net/textos/4495

Abraços Manu,

luz e paz


Hugo

Unknown disse...

Muito belo e profundo o pensamento de Jorge Sena. Se todos os pais pudessem escrever algo parecido aos seus filhos este mundo seria de respeito e de amor da vida pela vida e não subjugada aos pensamentos alheios, aos fanatismos religiosos e à perseguição política.
Não há nada mais importante que a vida com sabedoria, respeito e amor ao próximo.

Unknown disse...

Já conhecia,mas nunca é demais reler.Obrigado por partilhes esta pérola preciosa.
Beijinho.