CONTINUANDO A REFLECTIR NESTA CONFERÊNCIA DE MIA COUTO
As palavras moram tão dentro de nós que esquecemos que elas têm uma história. Vale a pena interrogar a palavra "pessoa" e é isso que começo por fazer, de modo simples e sumário. A palavra "pessoa" vem do grego antigo Persona. Este termo Persona tem a ver com máscara, tem a ver com Teatro. Persona era o espaço que ficava entre a máscara e o rosto, o espaço onde a voz ganhava sonoridade e eco. Na sua origem, a palavra "pessoa" referia um vazio que era preenchido por um fingimento, o fingimento do actor. Veremos que não estamos longe, de nos escondemos por trás de um máscara, na encenação dessa narrativa a que chamamos vida.Nas línguas do Sul de África, a palavra "pessoa" é uma categoria particularmente interessante. Um linguista alemão notou no século XIX que muitas línguas africanas do Sul do Sahara diziam "pessoa" usando basicamente a mesma palavra: mantu, no singular, e bantu, no plural. Ele chamou a esses idiomas de "línguas bantus" e, por extensão, os próprios povos passaram a ser designados de "povos bantus". O que é estranho porque, à letra, se estaria dizendo que existe um conjunto de povos a quem se chama os "povos pessoas". Recordo-me de um tocador de mbira, um camaronês chamado de Francis Bebey que encontrei na Dinamarca. Perguntei-lhe se tocava música bantu e ele riu-se de mim e disse: meu amigo, os chineses são tão bantus como os africanos.De qualquer modo, a ideia de pessoa em África tem origem diferente e percorreu caminhos diversos da concepção europeia que hoje se globalizou. Na filosofia africana cada um é porque é os outros. Ou dito de outro modo: eu sou todos os outros. Chega-se a essa identidade colectiva por via da família. Nós somos como uma escultura maconde ujaama (Ujaama significa Unidade), somos um ramo dessa grande árvore que nos dá corpo e nos dá sombra. Distintamente daquilo que é hoje dominante na Europa, nós olhamos a sociedade moderna como uma teia de relações familiares. Como veremos, esta visão tem dois lados: um lado positivo que nos torna abertos e nos conduz àquilo que é universal; e um outro lado, paroquial e provinciano que nos aprisiona na dimensão da nossa pequena aldeia. A ideia de um mundo em que todos somos parentes é muito poética, mas pode ser pouco funcional. Todos conhecemos o discurso do moçambicano comum: o governo é o nosso pai, nós somos filhos dos poderosos. Esta visão familiar do mundo pode ser perigosa, pois convida à aceitação de uma ordem social como se ela fosse natural e imutável. A modernidade está soprando nos nossos ouvidos algo muito diverso que obriga a um rasgão dentro de nós.
3 comentários:
Manú, não tinha lido esta maravilhosa reflexão ainda! Fantástica!! Li agora as duas postagens, estou aqui, repleta de pensamentos. Gostaria de saber expressar em palavras o que me vem agora, à mente. Preciso digerir melhor, processar melhor. É muita informação, da melhor qualidade.
O que nos faz pessoas? E o que nos impede de sê-lo?
Posso voltar depois?
Beijos.
Que bom que postaste o Mia. adorei reler aqui estes excertos. eu como africana aprendi cedo que eu sou os outros. admiro muito a noção de família...do outro...de pessoa.
é por isso que eu costumo dizer que "eu sou pessoa com muita gente dentro".
beijo
Ótimo texto pra refletir, Manu.
Saber de outros povos, outras culturas, é muito interessante.
Não conhecia Mia Couto, mas vou procurar lê-lo.
Bj
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