Era uma tarde do fim de Novembro, já sem nenhum Outono.
A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O céu estava alto, desolado, cor de frio. Os homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios. Os carros passavam depressa.
Deviam ser quatro horas da tarde de um dia sem sol nem chuva.
Havia muita gente na rua naquele dia. Eu caminhava no passeio, depressa. A certa altura encontrei-me atrás de um homem muito pobremente vestido que levava ao colo uma criança loira, uma daquelas crianças cuja beleza quase não se pode descrever. É a beleza de uma madrugada de Verão, a beleza de uma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza de uma inocência humana.
Instintivamente o meu olhar ficou um momento preso na cara da criança. Mas o homem caminhava muito devagar e eu, levada pelo movimento da cidade, passei à sua frente. Mas ao passar voltei a cabeça para trás para ver mais uma vez a criança.
Foi então que vi o homem. Imediatamente parei. Era um homem extraordinariamente belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam inscritos a miséria, o abandono, a solidão. O seu fato, que tendo perdido a cor tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome. O cabelo era castanho-claro, apartado ao meio, ligeiramente comprido. A barba por cortar há muitos dias crescia em ponta. Estreitamente esculpida pela pobreza, a cara mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de solidão e de doçura. No próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para o céu.
Como contar o seu gesto?
Era um céu alto, sem resposta, cor de frio. O homem levantou a cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um limite, já nada tem para dar e se volta para fora procurando uma resposta: A sua cara escorria sofrimento. A sua expressão era simultaneamente resignação, espanto e pergunta. Caminhava lentamente, muito lentamente, do lado de dentro do passeio, rente ao muro. Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta. Com a cabeça levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio.
Tudo isto se passou num momento e, por isso, eu, que me lembro nitidamente do fato do homem, da sua cara, do seu olhar e dos seus gestos, não consigo rever com clareza o que se passou dentro de mim. Foi como se tivesse ficado vazia olhando o homem.
A multidão não parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem estava sozinho, sozinho. Rios de gente passavam sem o ver.
Só eu tinha parado, mas inutilmente. O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas. Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos.
O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio, contra o sentido da multidão.
Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do homem. Ninguém o via caminhando lentamente, tão lentamente, com a cabeça erguida e com uma criança nos braços rente ao muro de pedra fria.
Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via bem. Só sabia hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade empurrava-me e um relógio bateu horas.
Lembrei-me de que tinha alguém à minha espera e que estava atrasada. As pessoas que não viam o homem começavam a ver-me a mim. Era impossível continuar parada.
Então, como o nadador que é apanhado numa corrente desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de me opor ao movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem.
Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeças, a imagem do homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensação confusa de que nele havia alguma coisa ou alguém que eu reconhecia.
Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vivido. Desenrolei para trás o filme do tempo. As imagens passaram oscilantes, um pouco trémulas e rápidas. Mas não encontrei nada. E tentei reunir e rever todas as memórias de quadros, de livros, de fotografias. Mas a imagem do homem continuava sozinha: a cabeça levantada que olhava o céu com uma expressão de infinita solidão, de abandono e de pergunta.
E do fundo da memória, trazidas pela imagem, muito devagar, uma por uma, inconfundíveis, apareceram as palavras:
- Pai, Pai, por que me abandonaste?
Então compreendi por que é que o homem que eu deixara para trás não era um estranho. A sua imagem era exactamente igual à outra imagem que se formara no meu espírito quando eu li:
- Pai, Pai, por que me abandonaste?
Era aquela a posição da cabeça, era aquele o olhar, era aquele o sofrimento, era aquele o abandono, aquela a solidão.
Para além da dureza e das traições dos homens, para além da agonia da carne, começa a prova do último suplício: o silêncio de Deus.
E os céus parecem desertos e vazios sobre as cidades escuras.
Voltei para trás. Subi contra a corrente o rio da multidão. Temi tê-lo perdido. Havia gente, gente, ombros, cabeças, ombros. Mas de repente vi-o.
Tinha parado, mas continuava a segurar a criança e a olhar o céu.
Corri, empurrando quase as pessoas. Estava já a dois passos dele. Mas nesse momento, exactamente, o homem caiu no chão. Da sua boca corria um rio de sangue e nos seus olhos havia ainda a mesma expressão de infinita paciência.
A criança caíra com ele e chorava no meio do passeio, escondendo a cara na saia do seu vestido manchado de sangue.
Então a multidão parou e formou um círculo à volta do homem. Ombros mais fortes do que os meus empurram-me para trás. Eu estava do lado de fora do círculo. Tentei atravessá-lo, mas não consegui. As pessoas apertadas umas contra as outras eram como um único corpo fechado. À minha frente estavam homens mais altos do que eu que me impediam de ver. Quis espreitar, pedi licença, tentei empurrar, mas ninguém me deixou passar. Ouvi lamentações, ordens, apitos. Depois veio uma ambulância. Quando o círculo se abriu, o homem e a criança tinham desaparecido.
Então a multidão dispersou-se e eu fiquei no meio do passeio, caminhando para a frente, levada pelo movimento da cidade.
**
Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas.
(Sophia de Mello Breyner Andresen, in Contos Exemplares)
16 comentários:
NOSSA QUE HISTÓRIA LINDA!
QUE HOMEM É ESSE...
BJIM
Maravilhoso este texto.
Perdi-me enquanto lia, já não sei se fui empurrado pela multidão ou se, sendo mais forte, a todas as emoções segui em frente e perdi de vez o olhar do homem e da criança.
Que maravilha, Manu...fiquei arrepiada da cabeça aos pés enquanto lia...me lembrou um conto da Clarice Lispector, chamado Amor...mas esse da Sofhia é mais lindo na minha opinião, contundente mesmo...amei querida!
beijos.
Este conto é espectacular ! Aliás como todos os da Sophia !
Obrigada pela partilha!
Um beijo *
Olá, Manú
Sophia é uma Senhora no ramo da poesia tanto como no de prosa.
Este conto que nos contas... é brilhante.
Comoveu-me, arrepiou-me.
Para além da beleza do conteúdo, propriamente dito, ela descreve, duma forma incrível o ambiente (movimento) da cidade na hora de ponta. Extraordinário!
Até sempre. Beijinhos
...a curiosidade flagela os sentidos quando diante de nós as palavras erguem a qualidade da escritora...
Sophia, sempre, eterna e bela em cada palavra!
Parabéns pelo post.
Comoveu até às lágrimas.Mexe muito com os sentimentos.
Sofhia Mello Anderesen além de uma grande escritora era uma Mulher com o coração cheio de amor pelo próximo.
Excelente Manú!
A emoção transborda do texto!
Nada mais tenho a dizer...só tenho a sentir.
Beijo
Astrid Annabelle
Querida Manuela.
Que estoria mais linda,mas nao posso deixar de compara-la ao nosso Cristo,que as pessoas trataram com desprezo e deixaram-no morrer sem fazer nada para salva-lo.Estamos aqui agora,com tantos irmaos morrendo de fome e de sede e a humanidade caminha silenciosa e no seu passo de manada,como bois.E preciso que olhemos em volta para socorrer aqueles que nos suplicam socorro.
Grande beijo.zenaide storino.
As palavras da Sofhia ,ternurentas e cheias de amor ,volteiam incesssantemente em redor das portas do paraíso.
Amei o texto Manú.
Beijo.
Antes q eu esquecao que é «xaguinhas»
Que conto lindo, valeu ler até o final.
São gestos que nos marcam e até posso afirmar que me passou algo assim, ou é fruto da riqueza deste maravilhoso texto: coisas dos muitos anos já vividos.
Agradeço e abraço-te
Voc~e me pega em um dia como o de hoje, em que as lagrimas estão teimando em cair.
Eu leio este texto emocionante, belo.
E choro...
Amei é lindo demais.
Bjos achocolatados e com lagrimas de emoção
Voltei para fazer um pedido.
Vota em mim????
Sim, excelente texto desta escritora que também admiro muito e já coloquei em meu blog algumas de suas poesias.
Pois remeteu-me a Saramago em seu Ensaio sobre a Cegueira.
um grande abraço carioca
Manuela, estou banhada em lágrimas! Encontramos esse homem quase que diariamente, ele suplica nossa atenção e nem o percebemos! Uma hora será tarde demais... O texto é lindo, fiquei sem fôlego lendo e sentindo o que era descrito! Eu torci para que ela tivesse chegado à tempo de levar o homem para um abrigo... Que pena!
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